domingo, 19 de outubro de 2008

Quatrocentos euros



“… De estórias terríveis está este País cheio de lés a lés, estórias abandonadas a si próprias, estórias que precisamente porque não são contadas pela TV ficam condenadas a uma espécie de clandestinidade que as agrava e que, sobretudo, agrava a responsabilidade colectiva que recai sobre todos nós, cidadãos sem estórias terríveis, que aceitamos ignorar ou esquecer essas estórias alheias.”


Foi logo a seguir do Telejornal. Apesar de ter acontecido num daqueles dias em que ainda se aguardava a decisão do Congresso norte-americano sobre a aplicação, ou não, de setecentos mil milhões de dólares de impostos para comprar os chamados «activos tóxicos», isto é, para resgatar com dinheiros dos contribuintes o crédito muito mal parado que gestores levianos mas principescamente pagos haviam concedido, o noticiário havia sido enfadonho. Incluíra, é claro, uma ou duas catástrofes, uma declaração confiante do senhor primeiro-ministro, uma discreta aleivosia dirigida contra a Rússia, mas condimentos destes são a rotina, já não chamam a atenção dos telespectadores. Foi depois de tudo isto que aconteceu. Que foi transmitida uma reportagem especial intitulada «Viver com quatrocentos euros».

Note-se que, na verdade, o título não anunciava uma realidade especialmente alarmante sendo as coisas o que são: sabe-se (sabe-o quem não se recuse a saber) que há por aí, por este País cinzento-negro, muita gente a arrastar uma difícil sobrevivência com ainda menos que quatrocentos euros. Ainda assim, porém, uma coisa é saber de uma sabedoria abstracta e coisa outra é que a amargura nos seja contada ou mostrada com um discreto frémito de indignação implícito na narrativa, que a vejamos com os nossos olhos e a entendamos com a nossa cabeça. Que foi o que aconteceu.

Era a estória verdadeira de Olga e do seu filho contada através de uma abordagem ao seu quotidiano de dificuldades e privações. Mas não era uma estória terrível, como seguramente teria sido possível contar se o fragmento de realidade escolhido fosse outro. Talvez, quem sabe? a reportagem tenha querido evitar a proximidade com o que podia ser entendido como uma reminiscência do neo-realismo, suspeita ou acusação que nos tempos que vão correndo bem pode suscitar alguma proscrição de um jornalista.

Vimos e ouvimos que Olga, viúva de 41 anos, trabalha muito (no trabalho especialmente simpático que é o de dar apoio a idosos doentes ou com muitas limitações) e ganha pouco: os tais quatrocentos euros que foram título do programa. Com esse dinheiro tão escasso tem de enfrentar as despesas inevitáveis: renda de casa, alimentação, outros consumos domésticos, custos com a escolaridade do filho. Por isso vive em permanente angústia que, felizmente, parece ir dominando manos mal. Mas, também felizmente, ainda consegue pagar o tratamento dentário de si própria e do garoto, pagar a televisão por cabo para que ela ajude o Zezinho nas muitas horas em que tem de ficar sozinho em casa, custear a sua inscrição num pequeno clube local onde ele pode ter acesso a algum exercício físico.

Como se vê, e como aliás ficou escrito um pouco atrás, não era uma estória terrível. E isso é que é terrível. Porque de estórias terríveis está este País cheio de lés a lés, estórias abandonadas a si próprias, estórias que precisamente porque não são contadas pela TV ficam condenadas a uma espécie de clandestinidade que as agrava e que, sobretudo, agrava a responsabilidade colectiva que recai sobre todos nós, cidadãos sem estórias terríveis, que aceitamos ignorar ou esquecer essas estórias alheias.


Tem a RTP, empresa pública de comunicação social, câmaras e microfones, jornalistas e técnicos, e tem diante de si um País onde o caso de Olga, embora amargo, está muito longe de ser representativo das piores estórias que por aí se vivem. Aliás, a própria reportagem que nos contou a angustiada luta quotidiana de Olga para manter o seu modesto nível de vida sublinhou que «muitos portugueses nem isso conseguem». Pois não, não conseguem, e a televisão pública não se esforça para no-lo contar. E isso é que é terrível.

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