quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

O sequestro do Haiti

A reocupação do Haiti pelos Estados Unidos da América (foi isso que aconteceu sem subterfúgios) é um dos passos mais negros da caminhada belicista e imperialista de Obama. Neste texto, John Pilger põe a nu os interesses que prossegue e a quem serve o bem-falante presidente dos EUA.



John Pilger* - 03.02.10

O roubo do Haiti foi rápido e grosseiro. Em 22 de Janeiro, os Estados Unidos conseguiu "aprovação oficial" das Nações Unidas para ocupar todos os portos e aeroportos do país, e para "garantir a segurança" nas estradas. Nenhum haitiano assinou o acordo, que não tem base legal. A força impôs-se com um bloqueio naval norte-americano e a chegada de 13 mil marines, forças especiais, mercenários e, nenhum deles com preparação para ajuda humanitária.

O aeroporto na capital, Port-au-Prince, converteu-se em uma base militar americana e voos de ajuda humanitária foram desviados para a República Dominicana. A chegada de Hillary Clinton levou à suspensão de todos os voos durante três horas. Enquanto haitianos gravemente feridos esperavam por assistência médica, 800 americanos residentes no Haiti recebiam alimentos e água, para serem depois evacuados. Passaram-se seis dias antes das forças estadunidenses fornecessem água mineral às pessoas desidratadas.

Um golpe tipicamente norte-americano.

As primeiras reportagens da TV desempenharam um papel muito importante, na criação de um ambiente de caos e de crime generalizado. Matt Frei, enviado da BBC a partir de Washington, parecia à beira de um ataque enquanto, aos gritos, falava sobre a «violência» e a necessidade de «segurança». Apesar da dignidade demonstrada pelas vítimas do terramoto, e da evidência de grupos de cidadãos a trabalhar sem ajuda para resgatar as pessoas com dificuldades e, inclusivamente depois de uma declaração estadunidense em que se assegurava que a violêcia no Haiti era consideravelmente menor que ante do terramoto, Freia afirmava que «a pilhagem é a única ocupação».

e que "a velha dignidade do Haiti se tinha esfumado».
 
Desta forma, a história da violência e da exploração estadunidense no Haiti trasladava-se para as vítimas. «Não há dúvida», relatava Frei imediatamente a seguir à sangrenta invasão do Iraque pelos EUA em 2003, «que o desejo de levar o bem, de levar os valores norte-americanos ao mundo e, particularmente agora ao Médio Oriente... está agora cada vez mais ligado ao seu poder militar».

Em certo sentido, tinha razão. Nunca antes nos supostos períodos de paz as relações humanas estiveram tão militarizadas pela avidez dos poderosos. Nunca antes um presidente americano subordinou o seu governo aos dirigentes militares do seu desacreditado antecessor, como fez Barack Obama. Para prosseguir a política belicista e de dominação de George W. Bush, Obama conseguiu do Congresso um orçamento militar sem precedentes de 700 mil milhões de dólares. De facto, Obama tornou-se no porta-voz de um golpe militar.

Para o povo do Haiti as implicações são claras, ainda que grotescas. Com tropas estadunidenses no controle do seu país, Obama nomeou George W. Bush para os «trabalhos de ajuda»: uma paródia que traz à memória The Comedians, de Graham Greene, que se desenrola no Haiti de Papa Doc. Os esforços de Bush depois do Furacão Katrina, em 2005, incluiram uma limpeza étnica de grande parte da população negra de Nova Orleans. Em 2004, ordenou o sequestro do haitiano, Jean-Bertrand Aristide, eleito demovraticamente e exilou-o na África. O popular Aristide cometeu a temeridade de fazer pequenas reformas legislativas, como um salário mínimo para os explorados trabalhadores das empresas do Haiti.

A última vez que estive no Haiti, vi muitas raparigas jovens a trabalhar em máquinas estridentes e com zumbidos da fábrica Superior, de materiais de basebol, em Port au Prince. Muitas tinham os olhos inchados e os braços feridos. Puxei da câmara uma câmara e fui posto fora. O Haiti é onde a América fabrica, quase de graça, os equipamntos para o seu sagrado jogo nacional. É o lugar onde as filiais de Wal Disney fazem os pijamas de Mickey Mouse, a troco de uma miséria. Os EUA controlam o açúcar, a bauxite e o sisal do Haiti. A cultura do arroz foi substituída por arroz americano importado, o que obriga as pessoas a deslocarem-se para as cidades onde vivem em bairros de lata.

Ano após ano, o Haiti foi invadido pelos marines norte-americanos, infames pelas atrocidades que estão especializados desde as Filipinas ao Afeganistão. Bill Clinton é outro dos farsantes que conseguiu ser nomeado pela ONU para o Haiti. Adulado anteriormente pela BBC como «o senhor amável... que levou a democracia a uma terra triste e conturbada», Clinton é o mais famoso pirata do Haiti, foi ele quem exigiu a desregulamentação da economia para benefício dos donos das fábricas que exploravam os operários. Ultimamente, tem promido um negócio de 55 milhões de dólares para transformar o Norte do Haiti numa «zona turística» para os norte-americanos.

Não é por causa dos turistas que o edifício da embaixada, a 5ª maior do mundo dos EUA. Há décadas que foi descoberto petróleo no Haiti e os EUA colocam-no de reserva até que o do Médio Oriente começasse a escassear. É cada vez mais importante manter o Haiti ocupado, território estrategicamente importante para os planos de Washington para «reconquista» da América Latina. O objectivo é o derrube de democracias populares na Venezuela, Bolívia e Equador, o controlo das abundantes reservas petrolíferas da Venezuela e a sabotagem da crescente cooperação a que se opõem desde há muito tempo os regimes aliados dos Estados Unidos.

O primeiro passo para esta «reconquista» deu-se no ano passado com o golpe contra o presidente José Manuel Zelaya, que também se tinha atrevido a propor um salário mínimo e que os ricos pagassem impostos. O apoio encoberto de Obama ao regime ilegal de Honduras foi uma clara advertência aos governos vulneráveis da América Central. Em Outubro passado, o regime na Colômbia, em grande parte financiado por Washington e apoiado por esquadrões da morte, propiciou aos EUA sete bases militares para «combater governos anti-estadunidenses da região».

A propaganda mediática preparou o terreno para o que podia vir a ser a próxima guerra de Obama. Em 14 de Dezembro, investigadores na Universidade de West England publicaram os primeiros resultados de um estudo que demorou dez anos a fazer sobre os noticiários da BBC acerca da Venezuela. Das 304 reportagens da BBC, só em três se mencionavam algumas das reformas históricas ao governo Chávez, enquanto a maioria denegria o extraordinário comportamento democrático de Chávez, ao ponto de o comparar a Hitler.

Tais distorções e servilismo das potências ocidentais sobejam nos media de referência anglo-estadunidenses. As pessoas que lutam por uma vida melhor, ou simplesmente pela própria vida, da Venezuela às Honduras e ao Haiti, merecem o nosso apoio.

New Statesman, 28 de Janeiro de 2010


* Jornalista australiano


Este texto foi publicado em www.johnpilger.com/page.asp?partid=564

Tradução de Miguel Guedes
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