quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O logro das «inevitabilidades»


As medidas que este Governo está a tomar são tão marcadamente ditadas pelos interesses do grande capital financeiro e tão descaradamente injustas que o Governo e os partidos da direita que o apoiam não conseguiram encontrar um discurso credível para as justificar.

E assim surge o discurso da «inevitabilidade». A bem da verdade, corrija-se: das falsas inevitabilidades – feito de falsas verdades, num monstruoso logro que querem impor ao povo.

A resolução de uma crise económica pressupõe sempre uma opção política. E só um indisfarçável e perigoso dogmatismo ideológico pode gerar um estreitamento político tão grande e tão grave que leve à afirmação de não existirem outras soluções.

Como acreditar que é aprofundando o modelo ultra neoliberal que se resolve uma crise provocada por esse mesmo modelo?

Foi a deliberada desregulamentação dos mercados financeiros que provocou casos como a falência do BPN e a crise que hoje vivemos, e que tornou os estados reféns desses mesmos mercados. Como aceitar que nos tirem direitos, que nos retirem salários, para os desviar e entregar, sem regras nem controlo, aos responsáveis pela crise? É preciso desmistificar este discurso de que a retirada dos salários de quem trabalha é a panaceia para todos os males.

Porque nos escondem quem fez a dívida, como foi gasto o dinheiro, quem são os nossos credores? Porque haveríamos de pagar uma factura que nem sequer temos o direito de conhecer?

Vivemos um período em que a promiscuidade entre o poder político e a alta finança se aprofunda. Para presidente do Banco Central Europeu foi nomeado Mario Draghi, que enquanto foi director para a Europa da Goldman Sachs, um dos mais importantes bancos de investimento do mundo, ajudou a Grécia a mascarar a sua dívida pública e simultaneamente a apunhalou pelas costas através de produtos financeiros tóxicos.

Por maus caminhos segue uma sociedade que aceita passivamente a injustiça como «inevitável».

O momento é de intervenção – a hora é de luta.

A convicção da nossa razão está a tornar-se uma força material capaz de se opor e de impedir o massacre social dos trabalhadores e dos povos.

  • Aurélio Santos

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Mais qualquer coisa


«Há medidas que nos tocam nas telhas da casa, no automóvel ou nas férias, mas estas entram-nos na casa e na cozinha. Entram-nos no estômago, na saúde». As palavras do bispo emérito de Setúbal, D. Manuel Martins, não podiam ser mais singelas e no entanto, ou precisamente por isso, exprimem de modo ímpar a tragédia que ameaça submergir o País caso se concretizem as medidas constantes no Orçamento do Estado para 2012.

Ouvir alguém como D. Manuel Martins – que sempre soube dar voz aos que não têm voz – dizer que as medidas anunciadas por Passos Coelho foram «um tiro no peito» e que «este tipo de democracia não serve, é uma farsa de democracia», devia ser motivo de reflexão para todos os católicos, tenham ou não responsabilidades governativas. Porque aquilo a que se assistiu esta semana foi não só ao anúncio do mais brutal ataque às condições de vida dos portugueses e à democracia – até Cavaco Silva reconhece que estão a ser postos em causa direitos constitucionais –, mas também ao maior embuste alguma vez desencadeado pelo regime dito democrático. Já é um logro colossal dizer que «não há alternativa», mas é ainda intrujice maior pretender convencer os trabalhadores e o povo português de que este é o Cabo das Tormentas que temos de atravessar para chegar ao Cabo da Boa Esperança. As explicações do ministro das Finanças não deixam margem para dúvidas: os cortes nos subsídios de férias e de Natal dos trabalhadores da Administração Pública e das empresas públicas, dos pensionistas e dos reformados, que atingem um total de 2 milhões e 600 mil pessoas, são a forma mais rápida de o Governo reduzir despesas do Estado. Mas não dão, de forma alguma, qualquer garantia de protecção do emprego. Pelo contrário, no horizonte perfila-se o espectro de dezenas de milhares de despedimentos, que o Governo tenta escamotear sob a capa da reforma do Estado.

O mesmo se pode dizer relativamente aos trabalhadores do sector privado para quem o Executivo «propõe» um aumento da carga horária de trabalho de 2,5 horas por semana. São mais de três milhões de pessoas que de uma penada vão sofrer um corte salarial de 6,25 por cento, sendo que a medida pode provocar a eliminação de mais 250 mil postos de trabalho. Em que é que isto contribuiu para as contas públicas? Em nada. O resultado vai para os accionistas e patrões, que por esta via podem arrecadar, num ano, mais de sete mil milhões de euros.

Não terá sido por acaso que no dia seguinte ao anúncio das medidas os juros da dívida soberana portuguesa subiram em todos os prazos. Como não terá sido por acidente que o bem informado presidente do ISEG, João Duque, disse que 2013 «vai ser isto e mais alguma coisa em cima».

Ao contrário de D. Manuel Martins, esta gente fala de números, não de pessoas. Nada sabem da comida que falta na mesa, do remédio que não se pode comprar, da casa expropriada pela banca, do desespero de não ter trabalho, da dignidade roubada. São bestas ao serviço do capitalismo. Por isso mesmo é que toda a coragem é necessária e toda a resistência é legítima. Esse é o «mais qualquer coisa» que temos para dar.
  • Anabela Fino
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