terça-feira, 9 de dezembro de 2008





Velha pólvora

A verdade é que em muitos sectores da sociedade, embora talvez não tanto quanto seria recomendável, o centralismo democrático é adoptado e ninguém se surpreende por isso: são ouvidas as opiniões dos escalões de actividade não situados no topo, esses pareceres ascendem até aos níveis onde as decisões são tomadas, quando estas são finalmente fixadas obrigam uns e outros. É, obviamente, um método eticamente democrático, higiénico. E normalíssimo ou, pelo menos, desejável que o seja.”


Era inevitável que a abertura do XVIII Congresso do PCP fosse a mais relevante notícia que na manhã do passado sábado a televisão nos traria. E com diferenças de tom pouco notórias entre as diversas estações, previsão esta que o passado de todas e cada uma delas claramente permitia. Tendo escolhido sintonizar a SIC-Notícias, que dá menos nas vistas e onde por isso talvez seja possível maior desafogo, assisti à breve entrevista feita a Odete Santos por uma jornalista que não apenas é distinta como também tem exercido as funções do que se designa, creio, por jornalismo parlamentar, muitas vezes uma especialização híbrida entre a politologia e o relato desportivo.
Quero com isto dizer que não se tratava de uma qualquer jornalista, com perdão da palavra, isto é, de uma daquelas jovens pré-estagiárias que todos os dias nos surgem, sempre diferentes e sempre lamentavelmente iguais: esta era uma jornalista experiente, decerto sabedora e credenciada. Talvez por isso se decidiu a abordar Odete Santos, que bem se sabe ser mulher de ideias firmes, palavras claras e poucas mesuras. Foi, da parte da jornalista, um acto de alguma coragem, sobretudo porque bem se sabe que a generalidade do jornalismo televisivo, pelo menos a julgar pelo que na TV se vai ouvindo e vendo, não morre de amores pelo PCP e trabalha em estrita coerência com esse dado fundamental. E, nesse quadro, Odete Santos não é um interlocutor fácil.
Não será surpreendente que eu tenha esperado da jornalista uma abordagem com alguma originalidade: a gente vive assim, a transferir de um lado para o outro, de uma pessoa para outra, expectativas que o bom senso talvez aconselhasse a não ter. De qualquer modo, o certo é que me desapontou ouvir a repórter a questionar Odete Santos acerca de dois temas que são há muito tempo insuportáveis velharias no arsenal do anticomunismo de grau inferior, pólvora já seca e contudo sempre reutilizada pelos que aparentemente não encontram melhores munições para disparar: o centralismo democrático e a Coreia do Norte.
Como se saberá, o centralismo democrático sempre fez uma grande impressão à generalidade das gentes não-comunistas sem que eu alguma vez tenha percebido bem porquê, o que provavelmente decorre de defeito meu mas pode também resultar da circunstância de o sentido da convivência democrática não ser uma percepção tão nítida e tão generalizada quanto seria desejável. A verdade é que em muitos sectores da sociedade, embora talvez não tanto quanto seria recomendável, o centralismo democrático é adoptado e ninguém se surpreende por isso: são ouvidas as opiniões dos escalões de actividade não situados no topo, esses pareceres ascendem até aos níveis onde as decisões são tomadas, quando estas são finalmente fixadas obrigam uns e outros.


É, obviamente, um método eticamente democrático, higiénico. E normalíssimo ou, pelo menos, desejável que o seja.


Quanto à Coreia do Norte, a coisa é mais curiosa. Terá surgido a partir de uma resposta em tempos dada com honestidade e rigor pelo deputado Bernardino Soares a uma pergunta formulada no quadro de uma entrevista dada ao «DN»: disse ele que não sabia se o regime da Coreia do Norte não era democrático. Note-se que o deputado não garantiu a democraticidade do regime norte-coreano, apenas deixou a questão em aberto, mas o anticomunismo militante não se ocupa de tais pormenores.
Depois disso, acrescentaram-se os argumentos da sucessão dita dinástica no poder da Coreia do Norte, o reverencial culto da personalidade pelo líder, a alegada pobreza do povo norte-coreano. Nunca a avaliação da Coreia do Norte foi feita como lucidamente Odete Santos recomendou à jornalista: no enquadramento das circunstâncias próprias de cada situação.
Contudo, os que muito se impressionam pelo facto de Kim-Zong-Il ter sucedido a Kim-Il-Zong nem parecem ter reparado que George W. Bush é filho de George Bush; os que se escandalizam com o culto da personalidade de que são objecto os líderes norte-coreanos fingem não saber que naquele mesmo Oriente o imperador do Japão era até há uns anos atrás olhado como a própria encarnação do deus vivo sem que o Ocidente mostrasse estranheza por isso; os que invocam situações de fome na Coreia do Norte silenciam as terríveis calamidades meteorológicas que durante anos sucessivos as desencadearam. E, de um modo mais geral, escamoteiam o facto de a Coreia do Norte não ser o modelo do PCP. Isto é: evitam cuidadosamente o dever elementar da honestidade intelectual.

  • Correia da Fonseca








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