domingo, 16 de novembro de 2008

O magarefe


por Iván Márquez [*]

O cruel assassinato de milhares e milhares de civis a mãos do exército, para a seguir apresentá-los nos seus "falsos positivos" como guerrilheiros dados como baixa em combate, é o mais recente e horroroso grito de vitória dessa seguridad democrática do presidente Uribe. Não pode agora esse presidente magarefe rasgar hipocritamente as roupagens quando sempre mediu em litros de sangue o êxito da sua política. Não pode agora posar como querubim celestial, ele que é o pai dos incentivos perversos à política de recompensas que dizimou tantas vítimas inocentes na Colômbia. Ainda que apareça com o rosto contrito a dizer que tudo aconteceu nas suas costas, este Uribe continua a ser o mesmo que condecorou o general Rito Alejo del Rio por haver massacrado a população civil de Urabá, e continua a ser o mesmo que há pouco se consolava diante do corpo ensanguentado de Raúl Reyes e diante da mão decepada de Iván Ríos, cujos cadáveres ainda não devolveu aos seus.

Nenhum governo, nenhum povo do mundo, deve dar crédito a um mentiroso teatral e cínico manipulador da opinião pública. O que se passou nas ditaduras do Cone Sul, apesar da sua gravidade, é apenas um pálido reflexo diante do voraz holocausto humanitário activado por Uribe no norte da América do Sul. Tanta barbárie e tanta impunidade ofendem a humanidade.

Quando o ministro da Defesa, senhor Juan Manuel Santos, reitera e insiste que este governo matou em seis anos mais de 30 mil guerrilheiros, pode-se perguntar quem serão então esses mortos se a guerrilha continua nos seus mesmos postos de combate contra a tirania. É necessário identificar também os milhares de massacrados que os paramilitares entregaram ao exército a fim de que os utilizassem como partes positivas da sua suja guerra contra-insurgente. As organizações de direitos humanos no mundo deveriam ajudar a esclarecer este dantesco drama humanitário do vitimizado país do esquecimento que é a Colômbia.

O que foi descoberto até agora é apenas a ponta do iceberg da infâmia. A triste história dos jovens de Soacha que foram levados enganados pelo exército até Ocaña para serem ali ultimados em nombe da política de "seguridad democrática" de Uribe é a mesma, sombria e lutuosa, de um universo de cidades, de aldeias e de campos da Colômbia implacavelmente castigados pela política fascista. Quantos crimes contra jovens desempregados..., quantos camponeses assassinados pelo exército nas serranias e nas selvas apresentados como guerrilheiros mortos em combate no âmbito do funesto Plano Patriota... Os cárceres estão cheios de "falsos positivos", ou melhor, de milhares de inocentes presos acusados injustamente de guerrilheiros e terroristas pela perfídia do regime actual. O iníquo sistema judicial premeia com promoções os juízes e promotores que mais condenem guerrilheiros, estendendo assim a prática dos "falsos positivos" à justiça. A Colômbia precisa ser iluminada por potentes reflectores que contribuam, a partir do exterior, para dissuadir os ultrajes do poder.

Derrotado pelas provas – não sem antes jurar e rejurar que os abatidos foram mortos em combate –, Uribe viu-se forçado a destituir alguns generais de Divisão e de Brigada, assim como cinco comandantes de batalhões para lavar as mãos e apaziguar a tormentosa crítica. Contudo, sustentou esta decisão no argumento peregrino de que saíam por falta de controle das suas tropas e por conluios com delinquentes, negando que se trata de um problema estrutural. "Agora o êxito será medido por desmobilizações e capturas" – disse –, sem explicar convincentemente a directriz 029 de Novembro de 2005 na qual o seu então ministro da Defesa, Camilo Ospina, actual embaixador na OEA, estabelecia recompensas por mortos, material de guerra e equipamentos apreendidos ao inimigo. Também parece ter-se esquecido que o mesmo instaurou nos princípios do governo uma rede de mais de 1 milhão de "sapos" ou informantes movidos pelas recompensas. Se os generais e os coronéis objecto de sanção saíram, como diz Uribe, por "conluio com delinquentes", então deveria ser aplicada a mesma consideração aos que se reuniram com delinquentes mafiosos da "Oficina de Envigado" [*] na própria sede do governo: o Palácio de Nariño.

O diário El Tiempo, de que são proprietários os Santos, ou seja, o ministro da Defesa e o vice-presidente, referindo-se ao expurgo de 27 militares intitulou com tintas escuras de cortina de fumo: "Varrida exemplar": "Há sérios indícios de negligência no comando"; "Actuavam na contramão da seguridad democrática e da doutrina e da honra militar"; "Não é um problema estrutural". Tão estrutural é que se actuassem consequentemente teriam que ir até si próprios, incluído o presidente. Já se foi esse sanguinário comandante do exército, general Mario Montoya, porque entendeu que era causa perdida tentar tapar o sol com as mãos. O espantoso facto delitivo estimulado pelo governo de dizimar vidas por recompensas e promoções não deve ficar numa demissão mediática; deve conduzir a uma responsabilização penal.

Dói e indigna ver como alguns politólogos, directores de notícias e colunistas estipendiados fazem-se eco da manipulação mediática posta em andamento pelo presidente Uribe e os senhores Santos. Outros optaram por um inexplicável silêncio cúmplice frente a este pavoroso crime de lesa humanidade. Até o silêncio de alguns purpurados fez soluçar Deus. Não deve demorar mais o julgamento e o castigo dos carniceiros do Palácio de Nariño.

Montanhas da Colômbia, 4 de Novembro 2008 (Modificado a 12/Novembro/2008 )

[*] Envigado: municipalidade no departamento de Antioquia. Na Área Metropolitana de Medellin existe um local com o mesmo nome.

[*] Membro do Secretariado do Estado Maior Central das FARC EP

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